12 novembro 2025

O Sentido Oculto do Roustainguismo

"O Sentido Oculto do Roustainguismo" é o título do capítulo VII da Segunda Parte do livro O Verbo e a Carne: Duas Análises do Roustainguismo, de autoria de José Herculano Pires e Júlio Abreu Filho, cuja publicação original é de 1972, pela editora Paideia.   

É o fechamento da série de artigos de análise do livro do Sr. Ismael Gomes Braga, feito por Júlio de Abreu Filho. 

Eis a transcrição deste capítulo: 

Nesta análise por vezes fomos ásperos, dessa aspereza chocante mas necessária nos ambientes espíritas. Mercê de Deus, entretanto, jamais nos afastamos daquela recomendação de Kardec: discutir sem disputar. Nunca deixamos de citar fielmente as fontes; nunca faltamos com o respeito à lógica, aos fatos, à verdade. Se, de passagem, fizemos referências a pessoas, vivas ou desencarnadas, jamais ferimos condições personalíssimas. É que essas criaturas estavam ligadas à projeção social de acontecimentos que interessam à gente espírita de modo muito particular.

Tomaram os espíritas como slogan número um o título de uma obra ditada pelo Espírito de Humberto de Campos: Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. Meditem os leitores sobre o conceito aí contido. É possível que o Espírito tenha lá as suas razões. Mas como? Quando?

Os fatos são estes: somos vanguardeiros na fila dos países analfabetos; esquecemos que a leitura é necessidade fundamental para a evolução do Espírito; as estatísticas mostram elevadíssimo percentual de mortalidade infantil, traduzindo condições de vida muito abaixo dos padrões mínimos exigidos pela dignidade humana; a tuberculose, que os médicos, a despeito do bacilo, chamam doença social ou moléstia de carência, eufemismos sinônimos de fome permanente, faz larga devastação nas classes médias e inferiores. Deixemos de lado quaisquer referências àquilo que não atinja diretamente o elemento humano e citemos, ainda, para edificação dos dirigentes espíritas, o fato de haverem cientistas de Manguinhos, de parceria com os da Rockfeller Foundation, constatado no vale amazônico largas faixas onde o teor de glóbulos vermelhos no sangue dos habitantes não vai além dos 35% da taxa normal, o que, por seu caráter generalizado, atraiu a atenção para outros aspectos da vida rudimentaríssima daqueles nossos irmãos.

Aproximemos esses fatos de uma frase corrente no país: “para inglês ver”. É a orientação que costumamos imprimir às nossas coisas e, parece, a isto se não forram os espíritas. Aquele belo dístico Pro Brasília, fiant eximia continua sendo dourada mentira: a razão estará ainda, e por muito tempo, com Euclides da Cunha, quando fala de uma civilização importada, sem raízes na terra, vivendo parasitariamente à beira do Atlântico. Tudo isso nos lembra a piada do incorrigível Emílio de Menezes: “O Brasil começa no Cais Pharoux e acaba em Cascadura”.

***

Mas um espírito disse... então é dogma.

Nós daqui de São Paulo, tenhamos nascido em Piratininga, nas coxilhas gaúchas ou nas adustas planícies nordestinas, vemos o Brasil no seu todo, horizontal e verticalmente. E transportando esse modo de ver para o terreno da doutrina espírita, temos a noção exata das tarefas assinadas aos espíritas do Brasil. Por isso dissentimos da opinião de ilustrado engenheiro, diretor de um órgão da imprensa espírita carioca, de que nos Estados não se encontram espíritas com capacidade para constituir um organismo legislativo para a direção nacional do Espiritismo. Discordamos de s. s. porque essa fobia ao provincianismo, desmentida pelas realizações no terreno social, no Rio Grande, no Paraná e em São Paulo, para citar apenas as mais importantes, é um sentimento anticristão e uma demonstração inconcussa da hipertrofia do Eu; é um complexo com forma endêmica na direção da Casa da Avenida Passos.

Porque temos essa visão de conjunto, nós de São Paulo promovemos, vai para um ano, um congresso espírita ao qual foram presentes, na Pauliceia, representantes de dezesseis estados brasileiros, a despeito da campanha deselegante, feita na sombra pela Federação Espírita Brasileira, previamente convidada para assumir sua direção. Agora, ante os resultados da U.S.E. (União Social Espíritas), a ex-Casa de Ismael resolveu, noutro gesto deselegante, criar um organismo para gerar confusão, imitando o nome e a sigla daquele: A.S.E. (Ação Social Espírita).

Por quais motivos assim procede?

Ensina Kardec que a doutrina, por sua moral fundamentalmente cristã, tem a dupla tarefa de esclarecer e reformar os indivíduos e de transformar a estrutura social por um processo evolutivo e paulatino, estabelecendo uma sociedade verdadeiramente cristã e não uma sociedade cristã para inglês ver. Assim sendo, cabe-lhe o dever de criar as condições psicológicas capazes de unir para fortificar e não as que separam para enfraquecer.

Que a FEB não quer unir está visto na sua ojeriza aos congressos e no fato de excluir do direito de participar de sua direção os espíritas kardecistas, isto é, aqueles que não aceitam as teorias de Roustaing (Estatutos da FEB, Art. 2º, letra a e Art. 36°, § 3º).

Para que seja realizada a tarefa de esclarecimento dos indivíduos é óbvia a necessidade de se lhes darem os meios.

Quais os que a FEB oferece?

Já os temos compendiado:

1. num país iletrado, um número de obras em esperanto quase três vezes o das que oferece em português;

2. uma revista obsoleta, insuficiente e sem plano educativo ou ordenação de conhecimentos, mas repleta de publicidade de obras não fundamentais para a realização de tarefas, individuais e coletivas, da doutrina e, até, de outras a ela prejudiciais;

3. incapacidade de atrair as camadas mais cultas da sociedade, pondo-lhes ao alcance as obras das grandes figuras estrangeiras, ou das que contribuíram para o avanço dos estudos científicos do Espiritismo e da Metapsíquica; ao contrário, mutilando algumas destas obras em raras traduções e adquirindo os direitos de tradução de outras para os engavetar;

4. adulteração das obras de Kardec, desde que o público não as pode cotejar com o original;

5.forjamento de volumes que Kardec não escreveu, como a “Doutrina Espírita” para aí enxertar a propaganda do roustainguismo;

6. expulsão de seu seio das sociedades que, não sendo roustainguistas, participaram, sem o seu consentimento, de congressos espíritas;

7. estropiação dos textos bíblicos nas obras de Kardec, para gerar confusão, e nas de Roustaing, para criar base lógica à argumentação;

8. alteração dos textos de obras mediúnicas, como fez com uma doada ao médium Francisco Cândido Xavier, para afeiçoá-la à tese roustainguista. 

Ora, estes processos são desmoralizantes. E é o caso de lembrar aos diretores da FEB que os kardecistas, ainda quando a par de todas estas coisas, não esqueceram a parábola do filho pródigo e são capazes de a pôr em prática. Tudo dependeria de querer esse filho pródigo voltar à casa paterna.

Mas fora preciso que compreendesse o sentido do roustainguismo. E corrigindo-se, corrigisse aquela instituição todas as falhas de que é justamente acusada.

Entretanto não é de esperar que o façam os seus diretores. E não o fazem porque não podem ou não querem compreender que são vítimas da mais solerte, pertinaz e organizada, ao mesmo tempo paciente, complexa e poderosa falange de Espíritos que se possa imaginar: a falange vaticânica.

Fazer a história minuciosa da FEB é rastrear o trabalho dessa falange. E sua ação tornou-se possível porque, encontrando as brechas, que são as falhas humanas, não esbarrou com aquele espírito crítico de que Kardec deu exemplo e advertência nas reiteradas recomendações que nos legou. Ali faltou, também, conhecimento seguro dos Evangelhos e escritos complementares.

É praxe nas sociedades espíritas aceitar tudo quanto lhes é dito por Espíritos e por conferencistas e doutrinadores. Esquecem que, sendo o homem um Espírito encarnado e o Espírito um homem desencarnado, são dois aspectos da mesma coisa. Consequentemente, se há Espíritos que sabem mais do que nós, há homens que sabem mais que muitos Espíritos. Como não há análise das comunicações, esses Espíritos de falange se vão insinuando: dizem verdades para conquistar o respeito, fazem diagnósticos e indicam medicação certa para conquistar a estima. Mas quando dominaram o terreno agem de maneira multiforme no sentido de desmoralizar a doutrina, pelo rebaixamento de seu nível e pela derrocada de suas sociedades.

Para esses Espíritos todas as armas são boas, desde que produzam os resultados que objetivam. Têm conhecimentos variados, contam com muitos especialistas nos múltiplos setores do saber. Por isso não recuam ante nenhum obstáculo, inclusive o da utilização da magia negra, isto é, o do emprego do trabalho mediúnico para fins maléficos. Exercitam uma ação violenta sobre os médiuns, já transformando a sua psique, já produzindo uma concentração de fluidos em determinados pontos do organismo perispiritual dos pacientes, a qual evolui e acaba por atingir certas glândulas, determinando um comprometimento endócrino e, por vezes, até o aparecimento de lesões orgânicas mais ou menos devastadoras, quando não o de neoplasias, algumas das quais irremediáveis, já por sua localização, já por sua própria malignidade.

De todos esses trabalhos o pior é aquele que se projeta sobre as mentes, porque compromete a mesma verdade do Eu superior. Afeiçoando-as a seus pontos de vista, aqueles obsessores tornam as criaturas sistemáticas, intolerantes, ilógicas e autoritárias e as arrastam a tomar as próprias ideias por verdades primeiras, os seus raciocínios como lógica infrangível.

São Espíritos desse quilate que procuram sustentar aquelas ideias cuja primeira vítima, nos tempos modernos, foi o próprio Roustaing.

O advogado francês não podia ignorar a posição de Kardec, como médico e como cientista; não podia desconhecer a projeção de sua obra. E conhecendo essa obra, deveria avaliar da segurança com que o Codificador tratava um assunto velho como a humanidade, revestindo-o de feições novas e lhe dando uma explicação consentânea com os últimos postulados da ciência.

Ora, até hoje nenhum espírito equilibrado quis infirmar a Bíblia ou nela introduzir modificações, riscar passagens e torcer frases e, por cima de tudo, pretender a aceitação de tais deformações. Há trabalhos notáveis de filologia e de crítica histórica que permitem fixar as datas de tais ou quais livros que a compõem; é possível, mesmo, rastrear algumas interpolações.

Modificações assim fizeram-nas alguns padres católicos, de maneira discreta, do mesmo passo que subtraem a Bíblia aos profitentes de sua religião. E o fizeram para que os textos modificados servissem de apoio a este ou aquele dogma.

Roustaing foi mais ousado, porque mais inconsciente; e mais inconsciente, a despeito de sua ilustração, porque vítima de uma obsessão: a de ser o messias da terceira revelação. Já o demonstra o título da obra: Revelação da Revelação.

Para que alguém, com o perfeito senso da magnitude da tarefa, se abalançasse a “corrigir a Bíblia valendo-se do ensino dos Espíritos”, fora mister tomar as seguintes precauções:

1. controlar as entidades comunicantes por meio de clarividentes bem desenvolvidos e de absoluta fidelidade;

2. criticar as mensagens, especialmente nas passagens que ferirem a concordância com os textos bíblicos;

3. exigir argumentos dos próprios Espíritos, os quais deveriam apoiar-se, também, nos conhecimentos linguísticos, sobretudo nos trechos em que suas mensagens divergem dos códices;

4. fazer a crítica das afirmações dos Espíritos à luz das conclusões a que já chegaram grupos especializados em assuntos bíblicos;

5. exigir elementos de identificação dos Espíritos comunicantes;

6. depois de severa análise, discutir a matéria com os autores das mensagens;

7. exigir que as mensagens sejam comunicadas igualmente em outros meios desconhecidos, aos quais seriam dados pelos Espíritos elementos para o estabelecimento de intercomunicação, a fim de que se possa verificar a concordância universal. 

A Bíblia é monumento tão vetusto, original e prestigioso que qualquer tentativa, por mais honesta que seja, de lhe alterar uma vírgula, exige estas canseiras, estes cuidados, estes critérios científicos que faltam na obra de Roustaing. Os roustainguistas precisam compreender que uma tradição de dezenove séculos, como é o Novo Testamento, não se destrói com uma simples e leviana afirmação não provada de um Espírito.

No seu livro A Bem da Verdade, que encerra os artigos de célebre polêmica, o Dr. Henrique Andrade deixou claro que os roustainguistas da FEB traduziram o triste livro alterando certas passagens com o fito de melhor encadear o raciocínio, baseando este em versículos bíblicos que também foram adulterados, coisa que não fez nem o próprio Roustaing.

A falange que age no Rio é mesmo pertinaz. Há muitos anos trabalha para inutilizar a obra de Allan Kardec. Isso vem do tempo de uma sociedade que depois, fundindo-se com outra, originou a FEB: “A Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade”. Esta fez as nossas primeiras traduções de Kardec para o vernáculo. Pois naqueles tempos, aí por 1880, já os roustainguistas queriam alterar a obra do Codificador, como se vê na primeira edição de A Gênese, por influência de Os Quatro Evangelhos de Roustaing. A edição é de 1882 e tal confissão vem na introdução; entretanto, diz que foi decidido “como prova de homenagem ao seu colecionador, nosso Mestre, Allan Kardec, conservá-las com o cunho que ele imprimiu-lhes”. E acrescenta: “A Sociedade Acadêmica julga que não lhe assiste, como a ninguém, o direito de alterar o plano e menos ainda as bases fundamentais, as teorias, a doutrina das obras publicadas pelo anoso Mestre; não só por lhe parecer isso uma profanação, por serem um legado precioso, pois que por elas conhecemos a verdade, se nos fez a luz; mas, ainda, porque não há lei alguma conhecida que justifique tal procedimento; e, se tal lei existisse, seria bárbara, despótica, vandálica, porque seria a anulação da propriedade, seria a negação do direito”.

Aquela velha gente podia equivocar-se, mas tinha gestos elegantes como este de fechar a introdução com uma mensagem do Espírito do próprio Allan Kardec, dada na sociedade, focalizando a questão: 

“Sim, porque ainda que qualquer ideia, das aí colecionadas, tivesse de sofrer qualquer retoque ou modificação, seria trabalho reservado para uma obra especial, cuja leitura, sendo boa para aqueles que já conhecem profundamente a Ciência Espírita, não convém àqueles que apenas começam: porque não estando preparados, teriam de fazer passar bruscamente por uma inversão todas as ideias arraigadas em seus cérebros, o que é contrário às leis naturais, e por isso inconveniente”.

“Não defendo a obra que colecionei, mas o melhor sistema de, com método, lenta e suavemente, preparar aqueles que devem conhecer o que de mais elevado poderia se apresentar à concepção humana”. 

Estas palavras criteriosas estão longe de significar uma adesão de Allan Kardec ao roustainguismo. Este não passa de um equívoco que deve ser destruído elegantemente, segundo os postulados da doutrina espírita cristã, sintetizado no pensamento agostiniano: abraçar os homens, mas profligar (destruir) os seus erros.

***

Um paralelo entre os trabalhos de Kardec e de Roustaing mostra o seguinte:

a) Kardec seguiu critérios científicos; Roustaing NÃO;

b) as afirmações fundamentais de Kardec têm concordância universal; as de Roustaing NÃO;

c) Kardec respeitou a ética nas pesquisas e citações; Roustaing e, principalmente, os roustainguistas NÃO;

d) Kardec promoveu sempre a discussão, para chegar ao esclarecimento; o Roustainguismo foge e proíbe a discussão, para evitar a evidenciação do erro;

e) Kardec é cristão: respeita os textos evangélicos e promove a união; Roustaing é anticristão: deforma os textos e exclui os kardecistas;

f) a obra de Kardec resiste à lógica, à crítica, ao bom senso e à moral; a de Roustaing é anticientífica, insensata e imoral, porque infama o caráter de Jesus Cristo;

g) como Espírito, Kardec sustenta a inteireza de sua obra; como Espírito Roustaing confessa o seu erro;

h) os cientistas contemporâneos e posteriores a Kardec, que na França, Itália, Alemanha, Rússia, Inglaterra e Estados Unidos investigaram o Espiritismo, deixaram trabalhos concordantes com a codificação kardeciana; nenhum deles, entretanto, tomou conhecimento do trabalho de Roustaing e qualquer referência indireta de sua tese central é no sentido de a condenar;

i) a obra de Kardec conduz à emancipação do dogmatismo e do ritual religioso; a de Roustaing submete o indivíduo aos dogmas e destrói a função social da doutrina espírita, que é essa mesma libertação, de que é exemplo a mariolatria dos roustainguistas.

***

Encerremos este trabalho.

Sabiam os judeus, que estudaram a lei e os profetas, bem como os Saduceus, que se haviam apoderado do Templo e punham em leilão o cargo de sumo sacerdote, transformando a religião em mercantilismo e a autoridade religiosa em privilégio oligárquico de uma família, como se verifica ao tempo da pregação e do sacrifício de Jesus Cristo, que era chegado o instante profetizado para a vinda do Messias. Por palavras e atos Jesus mostrou-se hostil a entendimentos que confundiam interesses religiosos com situações políticas, fosse do conchavo com as autoridades, fosse de chefia de uma rebelião, como pretendente ao trono judaico, para sacudir a dominação romana. Por isso o sacrificaram. Vendo, porém, o desenvolvimento posterior do Cristianismo, apesar de não expurgado da herança do Judaísmo; vendo que apóstolos e discípulos faziam largo proselitismo entre judeus e estranhos, temeram os rabinos por seus interesses materiais de exploradores do Templo.

Precisavam desacreditar os cristãos e justificar o seu crime.

Ora, os judeus e cristãos conheciam os fenômenos espíritas, de que o Velho Testamento estava repleto; estavam na memória de todos os acontecimentos do Pentecostes, que não passara de uma grande manifestação coletiva de mediunidade; ademais, sabiam os judeus que os primeiros cristãos praticavam a mediunidade. E procuraram tirar partido desse fato, soprando que Jesus Cristo fora apenas um espírito materializado, desses que Kardec chama de agêneres.

Daí as duas epístolas de João, o evangelista, apóstolo da predileção de Jesus, sem dúvida por ser o mais arguto, o mais evoluído, o mais receptivo, o mais capaz de grandes sínteses, como bem o demonstrou no seu Evangelho filosófico e no Apocalipse. João foi a sentinela: deu o grito nas passagens daquelas epístolas, citadas no nosso primeiro artigo (1 João, 4: 1-3 e 6; 2 João, 7), cuja repercussão encontramos nas epístolas de Pedro e de Paulo.

Por que assim procediam os judeus?

Porque se Jesus tivesse sido um espírito materializado não teria sido o Messias, porque não corresponderia às profecias. Não sendo o Messias, era um embusteiro. Continuariam os judeus absolvidos e gratificados por sua eliminação, pela consolidação de seu prestígio, do mesmo passo que essa primeira heresia prestava o serviço de desmoralizar o ensino do Nazareno, transmitido por seus apóstolos e discípulos.

Com o correr dos tempos abastardou-se o Cristianismo, ante a pressão das coisas materiais, contato com os políticos, proximidade do poder, tentação do conforto e do mandonismo. Paralelamente agiam outras forças sutis: o sincretismo religioso, marcante na liturgia, no ritual, nas práticas externas do culto, já então católico, menos por força da generalização de um conceito filosófico do que por um imperativo político de religião oficial de um império que dominava o mundo. Na verdade, todo o ritual católico, nos seus mínimos detalhes, é tirado daqui e dali, dos rituais das várias religiões que se encontravam, vivas, mortas ou agonizantes, dentro do próprio império.

Os dirigentes católicos herdaram, do lado romano, esse espírito de dominação e do lado rabínico a capacidade de mercantilismo com as coisas religiosas.

Ora, para um como para o outro desses aspectos era prejudicial a prática da mediunidade. Os médiuns viriam a ser para a hierarquia sacerdotal aquilo que para o rabinismo haviam sido os profetas — um aguilhão ou uma chibata. E simplesmente aboliram a mediunidade: por todos os processos, inclusive pelas torturas e pelas fogueiras.

Passando para a vida de além-túmulo essas figuras destacadas do clero observavam os médiuns. E, ou os afeiçoavam ao seu serviço ou os obsediavam e enlouqueciam, para que não viessem prestar serviços esclarecedores e, consequentemente, contrários aos interesses materiais da Igreja Romana. Pode-se bem ver esse feito das falanges vaticânicas na ação exercida nos ambientes reformados, onde se acredita, ao pé da letra, que as almas imateriais se salvam por meio de um banho no sangue material de Jesus, coisa que, além de paradoxal é imoral, por ser a justificação e um crime. Igualmente se o vê na crença protestante no Espírito Santo, isto é, nos bons Espíritos e na sua evocação, quando, entretanto, recusam a mediunidade, recusam o batismo no fogo do espírito e discordam dos Pentecostais, assim como estes dos Espíritas.

Quando chegou o momento de se realizarem as promessas do Cristo, isto é, da vinda do Consolador, representado na doutrina espírita, aquelas falanges vaticânicas, não podendo abrir brecha na contextura moral e na inteireza intelectual de Allan Kardec, procuraram agir em paralelo: escolheram uma figura de destaque, de mediunidade sutil, intuitiva e de inspiração, avassalaram um médium feminino para o serviço do primeiro, posto essa senhora lhes não aceitasse as mensagens, e restauraram a velha e desmoralizada heresia do corpo fluídico de Jesus, que se prestava admiravelmente para sustentar dois grandes dogmas católicos: o da Santíssima Trindade e o da Imaculada Conceição.

Define-se a situação, na prática, que é a seguinte:

1) nos centros roustainguistas a ação das falanges tolhe o desenvolvimento das grandes tarefas sociais, porque isto seria detrimento para o catolicismo;

2) nos centros onde a falsa compreensão de tolerância mistura kardecismo e roustainguismo dá-se um choque de correntes de Espíritos, manifesto nas dissensões internas que atrofiam os médiuns, anquilosam as sociedades, quando não as esfacelam;

3) nos centros puramente kardecistas, onde, em geral, não há estudo largo e profundo do assunto, são frequentes as crises, devidas ao trabalho de falanges; e, mesmo quando se constata que são falanges de padres, a falta de conhecimento panorâmico da matéria tira aos dirigentes o poder de domínio sobre aquelas, por isso que ignoram as causas profundas que as impelem. 

Observe-se que nem sempre é seguro o controle através dos videntes. Em geral estes não se acham suficientemente instruídos; assim não sabem estabelecer a diferença entre: a) manifestações de animismo do próprio médium; b) manifestações de Espírito encarnado, cujo corpo somático esteja no ambiente ou fora dele; c) apresentação de uma ideoplastia por um mistificador, que maneja os fluídos ambientes e naquela se mascara; d) manifestação de um Espírito veraz. Entretanto não seria difícil explicar essas diferenças de imagens astrais, noticiadas pelos videntes, com o fito de assegurar o controle das manifestações.

***

Se a Federação Espírita Brasileira se sente com vocação para ser uma federação espírita brasileira; se a grande maioria dos espíritas brasileiros são kardecistas e desejam a modificação do status quo criado pelos roustainguistas; se estes estão realmente convencidos das excelências de seu cisma, por que não concordam em tirar a limpo aquilo que os kardecistas impugnam?

Para tanto bastaria organizar um grupo selecionado nas seguintes condições:

1) número igual de kardecistas e roustainguistas, escolhidos entre pessoas de cultura e imbuídas da responsabilidade do trabalho em que irão participar;

2) um grupo de médiuns videntes, previamente submetidos a testes;

3) incorporações ou mensagens psicográficas através de Francisco Cândido Xavier, e de um outro médium, previamente examinado;

4) evocação dos Espíritos de Ismael, Bezerra de Menezes, Emmanuel, Allan Kardec e Roustaing;

5) aceitação de manifestações espontâneas de outros Espíritos. 

Nestas sessões far-se-iam as seguintes perguntas fundamentais, além de outras, decorrentes dos mesmos diálogos:

1) Quem está com a razão: Kardec negando ou Roustaing afirmando que Jesus Cristo não foi homem?

2) É legítima a mensagem atribuída a Roustaing, dada no Rio de Janeiro e publicada na obra Revelações de Além-Túmulo, psicografada pelo médium Sr. Carlos Gomes dos Santos?

3) É exato que o Espírito de Alan Kardec tenha dado apoio à tese do corpo fluídico de Jesus?

4) É autêntica a mensagem atribuída a Kardec e publicada pela Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade na introdução à primeira edição brasileira de A Gênese, no ano de 1882?

5) Como explicar a contradição entre as declarações de apoio de Kardec à tese roustainguista e a mensagem referida na pergunta anterior?

6) Porque, desde 1882 até hoje não teria sido possível organizar uma obra de desenvolvimento, ampliação e mesmo de correção da obra de Kardec, como seria admissível nos termos da citada mensagem?

7) São verdadeiras ou falsas as afirmações de João Evangelista em duas epístolas contidas na Bíblia, caracterizando como Espírito do Anticristo aquele que nega que Jesus Cristo viveu e sofreu na carne?

Se a FEB está com a verdade, é magnífica oportunidade de esclarecer seus opositores, que também são filhos de Deus. Se não o aceitar é que teme a verdade. Restará então aos kardecistas continuar proclamando a verdade com a FEB, sem a FEB, ou apesar da FEB.

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